Por José Coutinho Júnior
Da Página do MST
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou o Atlas do Espaço Rural Brasileiro, publicação que integra os dados do Censo Agropecuário 2006 com pesquisas sociais, populacionais, ambientais e econômicas. Segundo o Instituto, o objetivo da publicação é retratar a realidade territorial do campo brasileiro. Os dados, referentes à educação no campo, tecnologia e modernização do meio rural brasileiro, uso dos recursos naturais e concentração de terras, mostram um campo brasileiro desigual, no qual uma minoria segue privilegiada enquanto a maioria dos agricultores vive em situações precárias.
De acordo com José Juliano De Carvalho Filho, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), “Tudo isso ocorre porque o agronegócio é a opção econômica que o governo adotou para o campo”. Em entrevista à Página do MST, o professor comentou os dados apresentados pelo IBGE, e aponta que a realidade territorial do campo brasileiro é dura para os mais pobres.
Confira a entrevista:
Dos proprietários rurais que administravam diretamente propriedades agropecuárias, 3,9 milhões de estabelecimentos, ou 39% do total, eram analfabetos ou sabiam ler e escrever sem terem frequentado a escola, e 43% não tinham completado o ensino fundamental. Por que esse percentual tão grande?
Essa população não existe para o estado, e quando existe, as políticas para ela são de baixa qualidade. É só ver a distância que as crianças assentadas precisam percorrer para chegar à escola. Além disso, os professores recebem salários baixos, e dão aulas a muitos alunos. Para os pobres do campo, a política é pouco efetiva.
Já a concentração dos maiores percentuais de produtores proprietários com nível médio de instrução (regular e profissionalizante) ocorre nas áreas de domínio do complexo agroindustrial da soja e de outras commodities de exportação, demonstrando a correlação entre o aprimoramento técnico da agricultura e o nível de instrução do produtor rural.
Há uma mudança no tipo de emprego: as monoculturas, aliadas com a modernização do campo, acabam com boa parte do emprego rural, que costuma ser degradante para o trabalhador. Agora emprega-se apenas pessoas capacitadas para atividades industriais, como operação de máquinas, ao passo que os mais pobres perdem seu emprego braçal. Em áreas onde a soja entra, como no norte do país, há uma expulsão das populações tradicionais, e quando se expulsa uma população, obviamente não se gera emprego para ela.
A publicação também destaca que a agropecuária é uma das atividades humanas que causam maior impacto sobre o ambiente natural. O pampa lidera a depredação, com 71% da sua área ocupada com estabelecimentos agropecuários, seguido pelo pantanal (69%), mata atlântica (66%) e cerrado (59%). Por que a produção agrícola tem este caráter predatório?
O impacto negativo não é só na flora, mas também no controle privado dos bens naturais que esse modelo de produção exerce. É a opção brasileira, inclusive dos governos Lula e Dilma. Reinaldo Gonçalves (professor de economia da UFRJ) diz que temos uma “especialização retrógrada”, pois o agronegócio é uma forma subalterna e marginal de entrar no mercado internacional. É preciso exportar commodities em grandes quantidades para equilibrar a balança comercial, o que dá muito poder aos latifundiários e faz o governo refém da bancada ruralista.
Ao invés de produzirmos bens manufaturados, há apenas os primários: soja, carne, etanol. O impacto do agronegócio no meio ambiente é grande justamente por essa visão mercantil da terra e a influência ruralista grande, basta ver a aprovação do Código Florestal, que atendeu a diversos interesses ruralistas, e vai causar danos maiores no meio ambiente.
Aproximadamente 90% dos recursos hídricos do país são destinados à produção agrícola, produção industrial e consumo humano, sendo a maior demanda de água proveniente das atividades de agricultura irrigada. Em relação à produção agrícola, para quem vai a água?
A água está sendo usada pelo agronegócio. Há a deterioração da qualidade da água, devido a todos os produtos químicos que são despejados nela, sem que haja consequências para os grandes produtores. Quem acaba responsabilizado são os pequenos produtores: em um assentamento, existe uma burocracia para se abrir um poço, enquanto que os latifundiários usam recursos abundantes de forma irresponsável e não pagam por isso. Não é o pequeno produtor que contamina a água, e sim o grande.
O estudo aponta como avanços tecnológicos no campo os transgênicos e o uso de máquinas. Qual o impacto dessa tecnologia no meio rural?
A tecnologia é enviesada, pois desconsidera o saber dos povos do campo. O discurso de que “precisamos superar a fome” monopoliza a produção na mão de algumas transnacionais, pois há o mito de que o agronegócio é a única solução possível para acabar com a fome. As empresas só querem lucrar, não estão preocupadas com o país. Elas querem dominar as terras e a produção. Se continuar assim, vamos chegar em um ponto onde para plantar ou colher qualquer coisa vamos ter que pagar royalties a eles. O agronegócio não é a única opção, e ele deveria ser regulado pelo estado, pois o latifúndio impede os pequenos produtores ao seu redor de crescerem.
Não sou contra a tecnologia, mas a forma como ela é apropriada pelo agronegócio preocupa. A intenção é o monopólio. É como se fosse uma Reforma Agrária ao contrário, e a impressão que eu tenho é que os ruralistas veem o caminho livre para fazer o que querem.
A agricultura familiar, apesar de abranger 4,4 milhões de estabelecimentos agropecuários do país (84,4%), cobre apenas 80 milhões de hectares (24,3% da área total). A área média dos estabelecimentos com agricultura familiar era de 18,3 hectares, enquanto a dos com agricultura não familiar era de 330 hectares. Como a concentração de terras se relaciona aos outros dados mencionados?
Essa questão está na base de tudo. As principais características do campo brasileiro são a concentração de terras e a violência. O estado não cuida da questão da terra no sentido de beneficiar os pequenos produtores. Ao não regular o agronegócio, o estado destrói o pequeno produtor, que é muito vulnerável sem a sua assistência.
Medidas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), a compra de alimentos da Reforma Agrária para merenda escolar, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), são interessantes, mas insuficientes, pois ao mesmo tempo em que temos essas políticas, investe-se pesadamente no agronegócio. Nós precisamos de políticas estruturantes para os pequenos produtores.
Dessa forma, os interesses das empresas permanecem, e a agricultura familiar, sem os incentivos e políticas necessárias, não tem condições de enfrentá-los. O estado é ineficaz porque beneficia o capital. Não há opção política do governo em beneficiar os pequenos produtores; há muito diálogo, mas de concreto, não existe planejamento político.
Tudo isso ocorre porque o agronegócio é a opção econômica que o governo adotou para o campo, basta ver o assustador desmatamento na Amazônia. Se a mesma situação perdura há mais de vinte anos, mesmo com uma ampla quantidade de pesquisas e denúncias sobre os impactos que o desmatamento causa, é porque o projeto político do governo para o campo demanda isso. Se continuarmos desse jeito, nosso futuro infelizmente é o do agrobrasil, no qual os pequenos produtores não terão chance de sobreviver e o meio ambiente será cada vez mais depredado para a produção de mercadorias primárias.
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