sábado, 17 de maio de 2014

Acesso à terra e à água em questão, na entrevista com Francisca Sena

Karol Dias - comunicadora popular da ASA

“Sabemos que o capitalismo diz não ser preciso ter Reforma Agrária/ Seu projeto traz miséria, milhões de sem terra jogados na estrada/ Com medo de ir pra cidade enfrentar favela fome e desemprego/ Saída nessa situação é segurar as mãos de outros companheiros”. (Zé Pinto)
Francisca Sena, entrevistada pelo FCVSA | Foto: Arquivo FCVSA
O período em que acontece em todo o país a Jornada Nacional de Lutas pela Reforma Agrária lembrando os 18 anos de impunidade pelo massacre de Eldorado dos Carajás no Pará e os 50 anos do Golpe Militar com sua perseguição à camponesas/es organizados, é também o momento em que são fervorosamente reivindicadas a justiça no campo, direito à terra, desapropriação das áreas acampadas, fortalecimento da agricultura camponesa e agroecológica contrapondo o agronegócio, educação do campo, direito à água para consumo humano e produtivo, entre outras pautas importantes.

Nesse contexto, Francisca Sena, Assessora da Cáritas Brasileira Regional Ceará, coordenadora do P1MC (Programa Um Milhão de Cisternas) e integrante do FCVSA (Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido), fala da questão agrária no Estado do Ceará e de como o Fórum problematiza isso, em entrevista para a Comunicação Popular, que segue:

Como a concentração de terras interfere na execução dos programas (P1MC e P1+2)?
Independente da situação da terra em que vivem – própria, cedida, ocupada, emprestada... – as trabalhadoras e os trabalhadores rurais têm, entre outros, o direito de serem beneficiados com a água para o consumo humano e para a produção de alimentos. Estes dois direitos podem ser assegurados, respectivamente, através do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). A experiência das organizações na execução desses programas tem deflagrado conflitos entre as famílias rurais e os “donos das terras”, numa relação de poder desigual e injusta. Além da água, as famílias também têm direito à terra, mas como sabemos, a estrutura fundiária brasileira é marcadamente concentrada nas mãos de uma elite minoritária, gerando uma profunda desigualdade no seu acesso. Algumas famílias, por medo ou represália, desistem de aderir aos programas citados.

Algumas situações extremas chegam a retardar ou impedir a execução dos projetos. Acredito que a resistência é maior para as implementações previstas no P1+2 (cisterna-calçadão, cisterna-enxurrada, barraginha, tanque de pedra, barragem subterrânea...), talvez por elas ocuparem um espaço maior na propriedade e por representarem uma possibilidade de maior autonomização das famílias com o aprendizado de novas tecnologias, um aumento e diversificação do alimento que vai pra sua mesa e com a ampliação da renda da família, quando os alimentos excedentes são comercializados.

O que o Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido pode fazer para enfrentar esse problema?
O Fórum pode contribuir refletindo criticamente e gerando espaços de debate sobre o latifúndio e a tão urgente democratização da terra, com as famílias beneficiárias, os movimentos sociais, as ONGs e com a sociedade em geral, construindo estratégias de mobilização com movimentos sociais na luta por reforma agrária popular, dialogar e pressionar o governo a assegurar o direito à terra, através da reforma agrária popular, denunciar as violações cometidas contra famílias que resistem e lutam por terra.

O direito à terra é uma conquista fruto da organização popular e árdua luta campesina, muitas vezes violentamente reprimida. Se não houver luta, a reforma agrária não acontecerá. Ela nunca será resultado de um ato de tomada de consciência ou bondade dos latifundiários.

Como esse ano foi declarado pela ONU (Organização das Nações Unidas) o Ano Internacional da Agricultura Familiar, que estratégias o FCVSA pode adotar para fortalecer esse segmento para além da implementação de tecnologias de captação de água? É possível sem uma melhor distribuição de terras?Para além das implementações do P1+2 e P1MC, o FCVSA pode fortalecer as experiências das redes e das casas de sementes, tecnologia importante na recuperação e preservação das sementes crioulas e da biodiversidade da caatinga, na autonomia das trabalhadoras e trabalhadores rurais, na produção de alimentos, e, consequentemente, na soberania alimentar.

Ainda em 2014 está previsto o desenvolvimento de um projeto de sementes, a partir dos territórios, que contribuirá para potencializar a gestão comunitária das casas e redes de sementes e a capacitação técnica e política das famílias rurais. É importante também que o FCVSA apoie e desenvolva iniciativas de comercialização dos produtos da agricultura familiar, já tão presente na mesa da maioria das famílias brasileiras. Outra contribuição é aprofundar a reflexão e a consolidação de práticas agroecológicas, contemplando nelas, a promoção da igualdade de gênero. Outro caminho é buscar incidir e exercer controle social das políticas públicas agrícolas e agrárias.

Em todas essas iniciativas, é de fundamental importância que o FCVSA contribua para o fortalecimento político e organização das famílias rurais na luta, conquista e defesa da reforma agrária popular.  É preciso problematizar, dar visibilidade e canalizar as forças políticas para forçar a urgente e necessária reforma agrária, democratizando a terra, pressuposto para a construção de um país justo e igualitário.

Como ficam as relações de gênero nesse contexto da agricultura familiar e acesso à terra? Como o Fórum problematiza isso?
Quando falamos de agricultura familiar muita vezes perdemos de vista que os seus sujeitos, ou seja, as agricultoras e os agricultores, são sexuados e estabelecem relações permeadas de poder. Vivemos numa sociedade que historicamente favorece e valoriza os homens e com a agricultura familiar não é diferente. Na hora de decidir o que plantar, de distribuir as tarefas, ir para os espaços de comercialização, fazer a gestão da renda gerada na agricultura, prevalece a opinião e a vontade dos homens.

Na agricultura também é comum que a mulher e o trabalho que ela realiza fiquem na invisibilidade e sejam desvalorizados. Existe o desafio de romper esta invisibilidade e desvalorização, buscando evidenciar a significativa participação delas na agricultura familiar, ou seja, na produção de alimentos, na experimentação e apropriação de novas tecnologias, na ampliação da segurança alimentar e no aumento da renda familiar.

Uma das formas que o FCVSA pode contribuir para romper com esse sexismo é continuar estimulando a participação de mulheres nos espaços de formações e de gestão e da adoção de critérios de participação de uma paridade de gênero ou um percentual mínimo de mulheres em atividades estratégicas, como formações, intercâmbios, encontros. A participação nesses espaços favorece a troca de experiências, a ampliação de saberes, o exercício da fala pública e um maior conhecimento dos seus direitos.
Algo que pode parecer menor, mas que também vem sendo praticado de forma sistemática pelo FCVSA é a produção de materiais de comunicação (boletim, banner, cartilha...) que usam uma linguagem inclusiva de gênero e que dão visibilidade à imagem e à fala das mulheres.

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